CARNEIRO, Gustavo Braz
Arquiteto e Urbanista;CAU A122046-2
gustavo@grupos2c.com
As cidades contemporâneas apresentam dois desafios notáveis: a crescente necessidade de regularização fundiária urbana e a urgente resposta às mudanças climáticas. A regularização fundiária urbana busca legitimar e integrar áreas urbanas, enquanto a resiliência climática busca adaptar e mitigar os impactos do clima em transformação. Este artigo busca manter a discussão sobre a convergência entre estes temas, identificando oportunidades para a atuação integrada de arquitetos e urbanistas.
A regularização fundiária urbana, longe de ser uma mera formalização jurídica ou de recebimento de impostos, é, na verdade, um processo de reparação e reconhecimento. Reflete a busca por justiça social, garantindo direitos fundamentais às populações historicamente marginalizadas. No entanto, quando essas áreas são integradas à estrutura oficial da cidade, não se pode ignorar o cenário ambiental em transformação. A urbanização, se mal planejada, pode ser uma fonte significativa de vulnerabilidades frente às mudanças climáticas.
Por outro lado, as mudanças climáticas, com suas consequências drásticas, como elevação do nível do mar, ondas de calor mais intensas e eventos climáticos extremos, reforçam a necessidade de se pensar em soluções urbanas inovadoras e resilientes. A vulnerabilidade de assentamentos irregulares e comunidades desprotegidas é agravada em situações de desastres naturais, o que ressalta a importância da interseção entre esses dois desafios.
Diante desse panorama, surge uma pergunta crucial: Como os profissionais da arquitetura e urbanismo podem efetivamente integrar essas duas frentes, mitigando impactos negativos e construindo cidades mais justas e com capacidades adaptativas?
Interconexões e oportunidades
Ao abordarmos a regularização fundiária urbana é preciso perceber que esse processo desbloqueia uma janela de oportunidades urbanísticas; a integração de áreas antes à margem do planejamento oficial da cidade permite uma reflexão profunda sobre a tessitura urbana, levando-nos a projetar com maior sensibilidade às nuances ambientais. Tais ações, aliadas à criação e manutenção de espaços verdes, são fundamentais para reduzir ou mesmo extinguir ilhas de calor, beneficiando diretamente as comunidades recém-integradas e toda a cidade, estabelecendo um microclima adequado a manutenção das atividades humanas, dentro da zona de conforto.
A regularização fundiária urbana e a subsequente transformação urbana são oportunidades ímpares para fortalecer o tecido social da comunidade. As intervenções físicas devem ser acompanhadas de programas de engajamento comunitário, assegurando que os residentes se sintam parte integrante das mudanças e tenham voz ativa no processo. Essa inclusão não só potencializa o sucesso das intervenções, mas também constrói uma base sólida para a resiliência comunitária em face aos desafios presentes e futuros.
Habitação e mobilidade
A integração e a transformação das áreas urbanas, especialmente em nações em desenvolvimento, são processos complexos que exigem uma abordagem holística. No centro dessa metamorfose está a compreensão da habitação e mobilidade, não apenas como infraestruturas físicas, mas como direitos fundamentais que formam a espinha dorsal de uma cidade verdadeiramente inclusiva e resiliente.
No Brasil, onde os contrastes urbanos são tão evidentes e onde áreas informais e falta de infraestrutura adequada coexistem lado a lado com modernos centros urbanos, a urgência de soluções integradas torna-se ainda mais palpável. Neste contexto, surgem programas como o Athis (Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social) do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e o Reurb do Governo Federal. Ambos representam não apenas esforços para combater a informalidade, mas também uma tentativa de repensar a paisagem urbana, priorizando o bem-estar e a inclusão de seus habitantes.
A mobilidade sustentável, em sua essência, é mais do que apenas movimento; diz respeito à conectividade, à acessibilidade e à igualdade. Na sequência das recentes transformações urbanas, têm-se percebido uma mudança de paradigma, na qual a mobilidade não é apenas facilitada, mas incentivada de maneira ecológica. Bairros que antes estavam isolados agora são integrados, não apenas através de ruas e avenidas, mas também por meio de rotas acessíveis e ecológicas, favorecendo o transporte público coletivo, o uso de bicicletas e a realização de caminhadas através de vias peatonais. Essa reorientação, além de reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE), reforça um compromisso com uma urbanidade saudável, tornando as cidades lugares onde respirar – no sentido literal e figurado – se torna mais fácil.
Infraestrutura e comunidade
Em muitas cidades brasileiras, as áreas urbanas expandiram-se de maneira desordenada, deixando muitas comunidades isoladas, tanto geograficamente quanto em termos de acesso a infraestruturas adequadas. No entanto, a comunidade, ao se posicionar como agente transformador, figura como peça fundamental para reversão desse cenário. Quando ativamente envolvida em processos de regularização fundiária urbana, sua contribuição transcende à simples ocupação do espaço, moldando efetivamente a paisagem urbana e, simultaneamente, promovendo práticas que são ecologicamente sustentáveis e climaticamente adaptáveis.
A reinvenção da infraestrutura em áreas regularizadas vai além das edificações, fornecimento de água e energia, tratamento de esgoto, drenagem pluvial e vias de transporte. Implica repensar como as cidades interagem com o ambiente natural. Incorporar soluções baseadas na natureza, como jardins de chuva para gestão de águas pluviais, biovaletas para filtragem natural e áreas permeáveis para redução de inundações, destaca uma abordagem integrada que prioriza o bem-estar tanto das pessoas quanto do meio ambiente.
Mas, como salientado anteriormente, toda essa transformação tem na comunidade o seu epicentro.Seu envolvimento assegura que as intervenções urbanas sejam não apenas legítimas, mas também sustentáveis a longo prazo. Mais do que simples residentes, os membros da comunidade se tornam guardiões do ambiente, impulsionando a coesão social e fortalecendo a capacidade da cidade de enfrentar futuros desafios. Por meio de educação e participação contínua, a comunidade não apenas se adapta, mas lidera a vanguarda de um urbanismo mais sustentável e resiliente.
Participação ativa dos arquitetos e urbanistas
No complexo cenário urbano contemporâneo, os arquitetos e urbanistas são atores essenciais na formulação e realização de visões urbanas integradas e resilientes. A sua atuação vai além da mera prática técnica, estendendo-se à função de mediadores, educadores e defensores.
Esses profissionais têm a responsabilidade de se manterem sensíveis às complexidades sociais das áreas em que trabalham. Ao desenvolver projetos amplos de regularização fundiária urbana, devem fomentar e participar de diálogos abertos com as comunidades, garantindo que seus anseios e preocupações sejam considerados.
Em muitos cenários, arquitetos e urbanistas atuam como pontes entre várias partes interessadas, desde autoridades governamentais e investidores até comunidades locais e ONGs. E dispõem da capacidade de traduzir visões técnicas para públicos leigos e vice- versa, facilitando consensos e garantindo que os projetos sejam mais integrativos.
Ao compartilhar seus conhecimentos, promovem uma maior compreensão dos desafios e das possíveis soluções. Além disso, podem advogar por políticas públicas mais inclusivas e sustentáveis, usando sua influência para direcionar a agenda urbana.
Em suma, a atuação pró-ativa e consciente desses profissionais é a chave para garantir que a convergência entre regularização fundiária urbana e resiliência climática seja não apenas teórica, mas concretamente realizada nas paisagens urbanas.
Conclusão
A convergência entre regularização fundiária urbana e resiliência climática na arquitetura e urbanismo não é apenas uma possibilidade, mas uma necessidade. Para cidades que enfrentam desafios complexos de informalidade, desigualdade e mudanças climáticas, uma abordagem integrada oferece uma via de solução holística.
A atuação de arquitetos e urbanistas é fundamental neste cenário. Eles detêm as ferramentas para planejar cidades que honrem o direito à moradia aos seus cidadãos, ao mesmo tempo em que consideram os desafios ambientais do presente e do futuro. A visão proposta neste artigo é de cidades inclusivas, resilientes e sustentáveis, onde a regularização fundiária urbana torna-se um meio de grande importância para o desenvolvimento de cidades mais integrativas e adaptativas.
Este artigo foi publicado no II Seminário Nacional de Formação, Atribuições e Atuação Profissional do CAU.
REFERÊNCIAS
BARROS E SILVA, E.; CAVALCANTI, E. Resiliência e Capacidade Adaptativa: Recursos Para a
Sustentabilidade de Cidades e Comunidades. In: Anais do XV ENANPUR 2013.
CARNEIRO, G. Projeto para Habitação Social no Amazonas. In: Anais do ENTAC 2006.
CARNEIRO, G. Surgimento de Identidade na Ocupação do Projeto Morar Bem I. In: Anais do CHAB
2006.
FEUERSTEIN, G. Ligando os Pontos: Fototropia, Instinto de Nomadismo, Colapso da Biosfera e a
Salvação do Nosso Planeta. São Paulo: Pensamento, 2013.
MIGLIORANZI, V.; CERVINI, E. Identidade Habitacional e Pós-Ocupação: Estudo de Caso do Conjunto A
Habitacional Pedro Afonso Junqueira. In: Anais do I CTHAB 2003.
SATTLER, M.; SEDREZ, M.; ROSA, T.; SPERB, M. Aplicação de Tecnologias Sustentáveis em um Conjunto Habitacional de Baixa Renda. In: Coletânea Habitare Vol. 2 – Inovação, Gestão de Qualidade & Produtividade e Disseminação do Conhecimento na Construção Habitacional. Porto Alegre: Carlos
Torres Formoso e Akemi Ino, 2003.
TEIXEIRA, R.; PESSOA, Z. Planejamento Urbano e Adaptação Climática: Entre Possibilidades e Desafios em Duas Grandes Cidades Brasileiras. Natal: Revista Brasileira de Estudos de População, 2021.
WALLACE-WELLS, D. A Terra Inabitável: Uma História do Futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ZWINGLE, E. Caos Urbano. In: National Geographic – Brasil, ed. 31, 2002.